‘Com esta obra monumental, a Fundação Dr. António Agostinho Neto de Luanda coloca à disposição do público toda a documentação reunida pela polícia secreta portuguesa na perseguição constante que moveu ao militante nacionalista e dirigente angolano, Agostinho Neto, que conduziu o país à independência e se tornou o seu primeiro presidente da República. Daí a riqueza histórica excepcional destes cerca de 6000 documentos todos reproduzidos e publicados em fac-simile, abrangendo o período 1945-1975. Cremos não errar dizendo que é a primeira vez que um processo político é reproduzido integralmente, sobretudo com uma semelhante extensão e importância histórica. Eugénia Neto e Irene Neto, coordenadoras da edição, dotaram a edição de outros documentos, separando a apresentação dos fac-simile ano a ano por um resumo dos principais acontecimentos do período, ilustrado de fotografias (constituindo na totalidade um álbum fotográfico imenso), acrescido de mapas, cronologias e índices, tornando esta obra um documento de alta importância no meio cultural angolano e internacional.
Todavia, destaca-se, entre estes elementos complementares da edição, sobretudo o estudo biográfico que surge em introdução, da autoria de São Vicente, intitulado “Agostinho Neto e a Liderança da Luta pela Independência de Angola 1945-1975”, que ocupa as páginas 7 a 474. De modo sereno e objectivo, interpreta, apoiando-se nos documentos, o papel desempenhado por Agostinho Neto de modo cronológico, ao logo dessa trintena de anos cheia de lutas e de acontecimentos decisivos, por vezes trágicos, que exigiram escolhas ou criaram clivagens. Aí tem lugar a salvaguarda que Eugénia Neto, muito precaucionosamente, insere na Apresentação desta obra, uma vez que esta se refere à história recente: «o objectivo da sua publicação não será o de interferir de forma traumática na vida das pessoas mas de nos apropriarmos da nossa história e trazê-la ao conhecimento das novas gerações».
Ao percorrer-se esta sucessão de relatórios de denúncia – o primeiro documento é um relatório-denúncia da Legião Portuguesa de Coimbra de 11.07.1949 – de pedidos secretos de informação, de correspondência apreendida ou enviada, autos, mandados de prisão, processos, como o dos 50, de requerimentos de cópias de escutas, etc., na sua maior parte, documentos oficiais confidenciais – revela-se um universo desconhecido para muitos portugueses e angolanos, e por diversos motivos, insuspeitável e, a bem dizer, inacreditável. Por outro lado, afirma-se a fibra de uma personalidade que desde que entrou para a Universidade teve de combater constantemente contra um inimigo poderosíssimo, que dia a dia o espiava e se atravessava na sua vida e na sua carreira, impedindo-o de se realizar enquanto médico e enquanto cidadão amante do seu povo e implicado no seu destino em liberdade.
Através de organizações que criou ou integrou a sua luta tornou-se nacional. Finalmente, aparece, através duma fresta obscura, por vezes sinistra, «a história de Angola e de Portugal aqui vindas à luz do dia, mostrando-nos qual foi a luta do Povo angolano para recuperar a sua liberdade e a luta fascista do regime colonial para não perder as suas colónias», como diz Eugénia Neto. E a presidente da Fundação A. Agostinho Neto, acrescenta, dirigindo-se mais propriamente aos angolanos, grande nação de larga complexidade étnico-cultural: «É também uma ocasião ímpar para se esclarecerem alguns factos ocorridos há mais de 60 anos na vida de António Agostinho Neto e seguir o seu percurso, e o de muitos que o acompanharam, até 1974.»
À figura de Agostinho Neto Latitudes consagrou o nº especial 41-42 de Janeiro de 2012, e a sua grandeza exige ser integrada nesse período áureo das lutas de libertação nacional dos povos africanos, onde desempenhou o papel de principal líder angolano. Para levar todo um povo e um país de grande projecção à independência nacional, às qualidades individuais juntaram-se as de aglutinador de capacidades e de meios. O seu trajecto político, até 1975, pode dividir-se em duas fases: a portuguesa de 1949 a 1961 e a posterior no exílio, à frente do MPLA até à independência de Angola.
Em Portugal, Agostinho Neto soube integrar a sua postura de cidadão interveniente, na acção de colectivos (MUD Juvenil, PCP, e em diversos organismos de africanos (Clube Marítimo, Casa de Estudantes do Império -CEI, etc.) que tornaram menos destruidor o assédio constante da PIDE com as sucessivas prisões (1952, 1955, 1960 e 1961) e o desterro em Cabo Verde (1960-1961), durante um período de formação política e de organização dos jovens intelectuais angolanos. E foi numa intrépida fuga clandestina num pequeno barco de recreio de Lisboa até Marrocos, pilotado por arrojados militantes do partido comunista português, que o jovem médico e a esposa com as filhas nos braços, aportaram a Tanger, e se libertaram desses esbirros a mando do ditador Salazar, em 30 de Junho de 1962 (ver o vol. 2 da presente edição). A conquista da sua liberdade acha-se assim ligada a uma das mais marcantes e intrépidas acções empreendidas pela resistência ao totalitarismo salazarista.
Chegado a África com o título de presidente honorário do Movimento de Libertação de Angola novas e árduas tarefas o esperam para organizar a luta armada, entretanto desencadeada no interior do país, ao mesmo tempo que viaja e conquista mais apoio internacional à causa angolana. Os volumes 2 a 5 dão conta como as autoridades colonialistas portuguesas seguiram, dia a dia até serem derrubadas do poder, em 1974, toda a sua movimentação, procurando torpedeá-la, e opondo-se à sua acção, quer nos organismos internacionais, quer no terreno de guerra, quer ainda lançando a discórdia entre militantes e os diferentes sectores de opinião e os grupos de nacionalistas. O volume 4, por exemplo, insere documentação dos anos 1971 e 1972, e refere em 1971 que a UNITA atacou o MPLA no Leste !, que a URSS cessou a ajuda; a OUA deixou de reconhecer o GRAE, mas noticia também a ida de Agostinho Neto à China e à Coreia do Norte. À PIDE chegavam informações de agentes colocados em diversas cidades africanas sobre estas movimentações. Outros documentos são recolhidos pelo exército colonialista em campanhas no terreno, inclusivamente através de interrogatórios. A polícia secreta portuguesa executou vários dirigentes africanos, através de atentados, como o moçambicano Eduardo Mondlane e Amílcar Cabral; a Agostinho Neto procurou igualmente uma ocasião susceptível de eliminação física, como deixam entender as tentativas de antecipar as informações acerca das suas deslocações, que se acham minuciosamente registadas em vários documentos remetidos por espias.
Não se trata pois de um processo vulgar. Ao contrário, a documentação agora publicada emana em grande número de organismos dum Estado que se encontrava em perseguição dum líder temível dum movimento nacional que desencadeou a luta armada de libertação nacional, reconhecida internacionalmente. Daí que a documentação agora revelada apresente uma importância excepcional, no plano do esclarecimento histórico em geral, dos métodos aplicados pelos serviços secretos portugueses, e do condicionalismo a que o dirigente angolano e a direcção do MPLA estavam submetidos, para escapar à perseguição. Na fase africana, toma-se conhecimento dum vasto painel das actividades do MPLA, e de alguns dos seus dirigentes, dentro e fora de Angola, e das formas de luta desencadeada pelo povo angolano. Enquanto as assinaturas de autores de documentos oficiais ou não e de alguns informadores revelam, do ponto de vista individual, as opções tomadas.
As organizadoras desta notável edição, dirigentes da Fundação A. Agostinho Neto e ao mesmo tempo familiares do líder angolano, destacam a parceria que estabeleceram com os Arquivos Nacionais da Torre do Tombo de Lisboa para levar a efeito a reprodução destes documentos existentes no seu arquivo. Fruto duma inteligente e arrojada decisão, esta publicação dos arquivos do processo do Dr. Agostinho Neto, dando corpo documental público ao trajecto político do fundador da independência, que soube rodear-se de outros fiéis combatentes, a exemplo da sua alta personalidade, de homem tolerante, humanista e hábil político, não pode deixar de constituir uma forte arma de afirmação da identidade cultural de Angola.’